Humanidade de pedra


Fui "dispensada". Como uma peça de uma máquina mal oleada, fui posta de lado. "Despedimentos" como estes, sem aviso prévio, de um dia para o outro, sem nos olharem directamente nos olhos, estão na ordem do dia. Preparemo-nos.
Em Portugal um em cada cinco trabalhadores estão nestas condições precárias, falsos recibos verdes. Pessoas que, respondendo a horários de trabalho, hierarquias, desenvolvendo trabalho nas instalações da empresa e possuindo rendimento fixo, constituem tudo excepto simples prestação de serviços, como as entidades patronais preferem chamar. Milhares de jovens licenciados, entre muitos outros, encontram-se sujeitos a inesperadamente ficarem sem trabalho no dia seguinte, um despedimento simplex. Ferramentas descartáveis.
Não creio que este problema surja apenas por más decisões políticas. Decorre de um modo de vida generalizado, de uma falta de espírito gritante. Este tipo de relações entre as pessoas surge de uma crescente disfunção social, uma caprichosa patologia humana que só estima a ambição, a vontade de poder, e que desenvolve uma fria incapacidade de sentir os outros. George Orwell previu uma sociedade assim, uma geração de autómatos a quem é incutida uma forma de agir, de pensar, de viver uma vida predefinida com a qual não conseguirão contra-argumentar pois perderam entretanto todo o sentido crítico. Saramago no "Ensaio Sobre a Cegueira" conta-nos como uma estranha epidemia atinge a humanidade, causando a súbita perda de visão. É sob esta doença que se revelam as mais obscuras características humanas, testemunhas da degradação da sociedade, a falta de moralidade nas relações, uma cegueira de valores.
Pondero agora seriamente outras alternativas de trabalho, pois não são estas as regras e as peças com que quero jogar este jogo. Tentarei agora afastar-me deste ritmo, destes valores, destas desconsiderações, deixando lugar para aqueles que não exigem ser olhados de frente, olhos nos olhos. Junto-me a um vasto conjunto de arquitectos-desiludidos que procuram nas áreas próximas desenvolver um trabalho mais humano, mais criativo e compensador. Serviram-me os últimos anos, a passagem por dois ateliers e muitos testemunhos de amigos e colegas, para perceber que este não será o meu caminho. Não digo a arquitectura em si, mas a forma mais clássica que encaramos a sua prática.
Confronto-me agora com este desencanto, na verdade, com desilusões que não tardavam em manifestar-se, fosse qual fosse o episódio que as acordasse. E tive aqui oportunidade de estabelecer breves encontros e desencontros com aqueles que, sem saberem, foram dando mais sentido ao rumo que escolho agora caminhar.
É mais do que um momento de reflexão e expansão.

5 comentários:

  1. estamos cá. tudo é possível.
    hoje a minha pequenina descalçou as sandálias brancas e calçou umas galochas cor de rosa, da pré-natal, 3 tamanhos a cima(um bocadinho inapropriadas para esta frescura que temos vivido)... lembrei-me de vocês e da vossa menina das galochas. se não for por aí será por alguma desses caminhos de imagem, criatividade e cor...mas sei que vai correr tudo bem.

    naquele dia, escrevi sobre vocês http://coresdochabranco.blogs.sapo.pt/7368.html

    ResponderEliminar
  2. Minha linda menina, a tua/vossa desilusão por este país e por esta sociedade incrustada em valores desumanos é também a minha… eu vivi o dia 25 de Abril de 1974 com a esperança que só quando se tem 18 anos é possível ter. Desejei um país de igualdade, um país onde se respeitasse os valores humanos e acima de tudo a dignidade humana. E agora o que é que vejo? O que é que tenho para vos dar? Mas olha, isto mudará! Vamos ter esperança… Eu acredito piamente que vão começar a aparecer por aí uns “Obamas” prontos a fazer a diferença. Nada de desânimo, cada um de nós tem o poder de trazer plenitude para a sua própria vida, transformando a sua natureza. Quando um número suficiente de pessoas atingir este nível, o mundo será inundado com uma inimaginável infusão de luz… Abraço-te com a mesma ternura com que abraço a minha filha.
    (a propósito sou a mãe da Caracolinha)

    ResponderEliminar
  3. eu meu nome, gostava de agradecer o comment da mãe da caracolinha.. muito animador e encorajador. tenho tido mais sorte no mundo do trabalho do que a cris, mas de coragem preciso todos os dias para cozinhar outros movimentos e é sempre bom ver alguem a dar-nos força.

    ResponderEliminar
  4. Mãe da Caracolinha, deixou-me sem palavras, li e reli o seu comentário. Fiquei absolutamente emocionada. Obrigada pela força e pelo abraço ternurento que senti como se fosse também um abraço da minha mãe! É sempre bom saber que há quem veja este problema também da forma como o vejo e como o sinto, e que compreende esta minha decepção. Como sabe, esta não é uma mera decepção económica de quem ficou com prestações da casa para pagar, mas sim uma desilusão tremenda com as pessoas com quem me fui cruzando, com as suas formas de se relacionarem, com os seus valores mesquinhos, egoístas, e com aquilo que vejo ser um modo de pensar e agir convencional, generalizado, numa sociedade desmoralizada, emocionalmente medíocre. É assustador o que estas pessoas e o seu absoluto desconhecimento sobre as reais "necessidades" do ser humano as leva a fazer. E por comodidade seguem todas o mesmo carreiro, incapazes de se questionarem e de se aperceberem que esta vida não faz sentido ser vivida assim, numa sede ávida por poder, pelo dinheiro, "ter" , "ter", "ter" . Se lhes falta um dia este mundo que montaram e em que acreditam ficam sem saber afinal quem são, que valores defendem, que vida viver.
    Mas tenho a certeza que os Obamas aparecerão, convictos que a sociedade a este nível só poderá implodir. Eu nos últimos tempos tenho conhecido alguns Obamas, pessoas conscientes, que me dão muita esperança e força para continuar a acreditar nestes meus princípios e a não querer pactuar mais com eles. Como disse Krishnamurti , vivemos tempos de crise, mas uma crise de consciência. Enquanto não chegar a revolução das consciências fico grata por poder contar com as pessoas que tenho vindo a conhecer e que me têm dado as mais extraordinárias palavras nestes momentos.
    Mais uma vez, obrigada. A Caracolinha só poderia ter uma mãe com palavras destas! ;)

    ResponderEliminar