dressage

Suspenso, estende-se sobre nós um céu estival delicadamente pontilhado por estrelas. Uma agradável aragem sustém os ânimos daqueles que esperam o início do evento. Numa grande varanda, num dos primeiros andares do largo hotel, misturam-se o perfume das veraneantes e o cloro da piscina. Lá em baixo, os grandes holofotes, dispostos ordenadamente, iluminam os relvados com os seus focos quentes e amarelos, revelando os vários enxames de mosquitos que levam as senhoras a cobrir os ombros com as suas elegantes écharpes.

O espaço destinado ao espectáculo compreende o court de ténis, adaptado à recepção da orquestra sinfónica, e o picadeiro, onde surgem diversos cavaleiros júnior acompanhados pelos seus póneis de crinas resplandecentes.

Numa mescla de conversas, risos e de sons característicos da afinação dos instrumentos, uma cavaleira, pouco calma, reúne todas as atenções ao desafiar violentamente o pequeno animal que, demasiado assustado com o barulho circundante, insiste em manter-se parado na arena.

O spalla chama o maestro que não demora em aparecer exibindo um fato negro impecável. É recebido com aplausos clamorosos aos quais se seguem alguns segundos de silêncio dedicados à concentração do regente.

Inicia-se a peça com um descontraído pizzicato.

Os cavaleiros conduzem os animais numa dança celestial de destros piaffes e passages. O pónei assustado permanece nervosamente imóvel, hirsuto, manifestando no seu triste olhar uma profunda estranheza. A cavaleira e o seu vaidoso orgulho desencadeiam uma lastimável cena na pista, uma nota dissonante na música. Furiosa, voa da sela e, com o apoio de muitos espectadores, lança odiosos insultos e agressões ao pequeno pónei. Uma voz feminina afirma: “Minha querida, rédea curta senão ele faz-te passar vergonhas.”

Clara indigna-se e observa a multidão empoleirada sobre o picadeiro vociferando gritos de guerra, incentivando aquele lamentável comportamento. Olha o pónei, “Ele nunca poderá dedicar-se à música, dançando, enquanto conviver com a severa postura da sua cavaleira.”, pensa.

A orquestra, alheia à agitação, acelera o passo num intenso frenesim de sons que serve de banda sonora à batalha empertigada da cavaleira. Ninguém atenta a música.

De súbito, as vozes da multidão calam-se perante uma nuvem confusa de uivos e latidos. Os olhares dirigem para as sebes que delineiam o espaço hoteleiro. Por de traz do alinhamento dos arbustos impecavelmente podados irrompe uma matilha desordeira, exaltada com a música. Surgem mais de trinta cães que encerram diversas formas, feitios e cores. O espanto ouve-se por entre a multidão. Enquanto os canídeos avançavam em direcção à orquestra, invadindo o picadeiro, remexendo a piscina, os cavaleiros suspendem a demonstração de maneira a proteger os póneis da aparição inesperada.

Os músicos, absortos, continuaram inabalavelmente a tocar a peça.

Na varanda, a multidão inquieta critica a organização do evento pela interrupção abrupta. Gesticula, grita, empurra. Algumas pessoas escapam-se para o interior do hotel, receando um tumulto. Muitas solicitam, junto à recepção, a devolução do dinheiro do bilhete.

O pónei assustado tem agora a rédea solta. Com o susto do assalto libertou-se da companheira e galopa feliz, desenhando círculos pelo picadeiro na companhia de um pequeno grupo de cães. Após várias fintas àqueles que o pretendem demover da sua intenção de fuga, salta a vedação de madeira e corre velozmente para a praia. Clara sorri assistindo à sua bravura.

Os músicos, sem nunca suspenderem a peça, riem-se entre si em tom de cumplicidade.

Clara ouve o desagrado de uma idosa: “Fui bailarina em nova. Entre tantos espectáculos em que participei nunca nenhum foi tão desastroso como este onde estamos. Preciso de sair daqui!” À conversa juntam-se mais uns quantos indignados que desaprovam o destino do evento. As vozes estridentes e a forma atropelada como conversavam fazem Clara afastar-se, encostando-se à guarda da varanda. Espantada, observa a matilha que segue, à beira-mar, uma enérgica corrida comandada pelo pónei.

– Que confusão que isto me faz! – confessa a bailarina.

– Foi dinheiro atirado à rua! É raro ouvir esta peça ao vivo e com esta pouca-vergonha mal consegui escutar um acorde!

– Senhores, senhores, aproximem-se. Vejam na praia a felicidade daqueles animais. Reparem como se movimentam ao som da orquestra numa dança tão genuína.

De rostos desconfiados, chegam-se junto de Clara, reclinando-se na balaustrada. Atentos, não falam por minutos. A rapariga vê despertar nos olhos da bailarina um brilho jovial e encontra os restantes imersos na música, entregando os corpos à sua fruição.

– Uma dança sem coreografia é a dança da liberdade. – exprime a bailarina emocionada.

Lá em baixo uma voz insolente interrompeu a contemplação. A cavaleira pendurada num poste da vedação chama pelo pónei.

– Valquíria! Valquíria!

4 comentários:

  1. obrigada, Bruno! Este conto deve muito a ti*
    Cri

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  2. Brilhante!! é pena que o conto seja tão curto, vá lá!!! continua..,já me estava a imaginar a correr velozmente, tambem, à rédea solta na tentativa de acompanhar o pónei e a fugir dos cães, até senti os meus pés molhados a enterrarem-se na areia e o vento quente a desalinhar-me o cabelo.. A Clara sorriu assistindo à minha bravura na tentativa de acompanhar o lindo ponei. Os músicos.., esses suspenderam a peça irritados com tanto confusão, que pena!!!

    ADORO-TE

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