retratos à luz do dia


Em situações de maior poder e sem olhos presentes que o julguem, que o envergonhem, será que para o ser humano a liberdade é apenas entendida como a oportunidade para a realização daqueles actos mais cruéis e bárbaros que esconde às escuras dos outros?
Vi há alguns dias na RTP2 o documentário "Os Fantasmas de Abu Ghraib" (2006), de Rory Kennedy, que relata as torturas na prisão iraquiana de Abu Ghraib depois do 11 de Setembro. Rory Kennedy tenta investigar a história que estará por trás do conjunto de fotografias que vieram a público algures em 2004, entrevistando os soldados envolvidos nas torturas, oficiais do governo, historiadores, etc., e fazendo um retrato psicológico do que se vivia na prisão e quais as causas que motivaram a obediência destes militares à prática destes abusos. Muitos respondem que foi o ambiente da prisão que os "embebedou" de tal forma que, apesar de inicialmente se terem repugnado, acabaram por considerar todas estas atrocidades perfeitamente inofensivas, chegando a sorrir para as fotografias como fariam num passeio turístico.
Impressiona-me o que esta patologia humana, com raiz em grandes preconceitos e opressões sexuais, religiosas, políticas, poderá ser capaz de fazer quando perversamente escondida dentro de portas. As humilhações passam imensas vezes por actos de sadismo mórbido ou pela simulação sexual (em diversas situações pretende-se desvalorizar a virilidade dos detidos). Estes são fotografados nus, amontoados uns por cima dos outros ou em condições "animalescas" (sendo que aos animais não consigo admitir igualmente tratamentos desta natureza). São acorrentados, permanecendo dias e dias sem roupa, encapuçados, sem alimentos, nem água, muitas vezes sem luz, sentados no meio dos seus próprios excrementos. Violações, espancamentos, electrocussões, ameaças com cães, hipotermias induzidas...Idosos, crianças, mulheres, homens, inocentes...
Na verdade todos temos consciência que aquilo é apenas a pontinha do iceberg. Enquanto as fotografias escandalizavam o mundo, os EUA garantiam constituir apenas uma situação isolada , fruto da insolência de alguns dos seus militares. Ora, estas sessões de torturas acontecem em inúmeros países (Afeganistão, Iraque, Síria, Egipto, Cuba) não podendo ser resultado da individualidade de alguns soldados pois a aplicação de determinados métodos de torturas , identificados em relatórios ou através de testemunhos, exige uma preparação e conhecimento que demonstra ordens superiores. A única excepcionalidade deste acontecimento foi, de facto, ter sido fotografado e ter aparecido à luz do dia.
Guardará o ser humano tanta miséria, raiva e rancor dentro de si que ao se deparar face a face com seres vulneráveis e indefesos só os consegue humilhar? Serão certamente tão terroristas aqueles que ao querer combater o terrorismo (hum!?) praticam (ou defendem!) estas técnicas de interrogatórios sobre os prisioneiros. Estes episódios de barbárie, de puro horror, demonstram que o ser humano caminha a passos largos para a falência dos seus valores em prol de interesses que falam bem mais alto. O que aconteceu ao valor da vida, aos direitos humanos, à igualdade e fraternidade entre os povos? São meras palavras sem sentido que constam nas constituições dos governos.
E de repente lembrei-me de algumas cenas do filme de Werner Herzog "Até os Anões Começaram Pequenos", onde um conjunto de anões que vivem numa instituição, isolados no meio da paisagem desértica das Canárias, organizam uma revolta aproveitando a ausência do director. A "liberdade" de não possuírem uma vigilância, um controle, origina uma sucessão de episódios violentos, cruéis e depravados contra cegos, anões mais pequenos e animais. A humilhação, o bizarro, a loucura. Acho que este filme retrata plenamente a perversidade que a natureza humana poderá encerrar e a forma como se encara enganosamente a "liberdade". O filme é uma ode à desordem e à irresponsabilidade (à semelhança do que tem acontecido neste tipo de prisões).


Encontrei no Youtube "Os Fantasmas de Abu Ghraib" em espanhol, dividido em 6 partes. Fica aqui o link para a primeira parte: http://www.youtube.com/watch?v=jGjV5LLogvQ

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