vida filosófica


Ontem na praia deparei-me com um texto de Michel Onfray capaz de resumir uma antiga e recorrente conversa com o Zé Luis a quem reclamo incessantemente uma obra própria, longe dos comentários e análises das obras de outros autores. Uma obra da sua experiência. A filosofia é como a arte, não é uma actividade autista de escritório, desligada. Ela caminha ao nosso lado na rua, de mãos dadas com as nossas vivências, paixões e angústias.
" A prova do filósofo? A sua vida. Uma obra escrita sem vida filosófica que a acompanha não vale a pena nem por um segundo . A sabedoria mede-se pelos detalhes : o que se diz e o que se faz e o que não se faz, o que se pensa e o que não se pensa (...) Reduzamos, pois, a fractura esquisofrénica postulada por Proust com a sua teoria dos dois eus: com efeito, ela permite separar radicalmente um filósofo que escreve Ser e Tempo do homem que adere ao Partido Nacionalista Socialista Alemão dos Trabalhadores durante todo o tempo que durou o nazismo. Neste sentido, um grande filósofo pode ser nazi e um nazi pode ser um grande filósofo, sem qualquer problema: o eu que redige um volumoso tratado de ontologia fenomeno-lógica nada tem que ver com aquele que defende e cauciona uma política de extermínio. (...)
O filósofo é filósofo vinte e quatro horas por dia, mesmo quando faz a lista da lavandaria antes de retomar o argumento habitual. (...)
Decorre disto a necessidade de uma íntima relação entre teoria e prática , entre reflexão e vida, entre pensamento e acção. A biografia de um filósofo não se reduz somente ao comentário das suas obras publicadas, ela abrange a natureza do vínculo entre os seus escritos e os seus comportamentos. Só se pode chamar obra ao conjunto. O filósofo deve mais do que ninguém manter unidos esses dois tempos tão amiúde colocados em oposição. A vida alimenta a obra que , por sua vez, alimenta a vida : Montaigne foi quem primeiro o descobriu e demonstrou: ele sabia
que, quando se faz um livro, tornamo-lo tanto mais notável quanto ele por sua vez nos constitui. "
Michel Onfray, "A Potência de Existir", Campo da Comunicação

Concordo com Onfray, para mim, fazer filosofia é processo biográfico.
A tradução portuguesa desta obra foi feita por esse mesmo amigo e é apresentada aqui.

2 comentários:

  1. E isso é que desanima! Por vezes penso na riqueza transbordante da vida da maior parte dos filósofos que conheço, sobretudo daqueles que viveram na primeira metade do século XX, e das vicissitudes, trágicas a maior parte das vezes, pelas quais passaram: a guerra, a ameaça das ideologias totalitárias, os campos de concentração... Será que o tempo que nos coube viver é simplesmente insípido? Ou será que a insipidez tem que ver com a maneira como olhamos para o que nos rodeia? Apesar da interrogação, pressinto qual seja a tua reposta... :)

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  2. Se calhar é mesmo isso...a insipidez está na maneira como olhamos o que nos rodeia.

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