terra, areia ?


Hoje o meu dia nasceu nublado.
Lá fora o céu vestiu-se repentinamente com um cinzento estranhamente aborrecido, contrariado, arreliado. Geralmente gosto de dias assim, melancólicos e reflexivos, mas este teve um inquietante cinzento mau feitio que me perturbou. Um cinzento contaminado, infeccioso. Cinzento aflição.
Como num road movie encontrei na estrada a minha fuga.

Caminhei, caminhei, caminhei.
Precisava do campo, longe da insipidez da praia. Procurava uma paisagem contida, limitada, habitada. Afastei-me até não sentir mais presença humana. Insectos atemorizadores, hortas, arcaicos sistemas de rega, abóboras, batatas, couves rendilhadas pelos caracóis, pereiras, videiras, margaridas, papoilas, capoeiras, um burro, tractores.
Terra molhada.
Caminhei mais um pouco até me perder, assustei-me e voltei para procurar consolo na azáfama humana. Precisava agora de paisagens extensas, hostis.
Caminhei, caminhei, caminhei. Perfurei as dunas e perdi de vista a extensa amplitude da baía.
Sal, algas, horizonte, gaivotas, pulgas-do-mar, maresia, pessoas.
Areia molhada.

5 comentários:

  1. nhami que saudade da independência de poder partir para passear. cheirar o mar ou a terra molhada. mas esta dependência traz-me outros aromas. saudades!

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  2. Que maravilha… na descrição do teu (peço desculpa pelo abuso do tratamento mas é como se te conhecesse de pequenina) passeio revisitei a minha juventude. Também fazia longos passeios nas férias quando me fartava da dualidade mar/areia… na tua descrição, consegui sentir os cheiros e transportei-me, quase sem querer, para essa fase da minha vida e até senti as pulgas do mar a saltar nos meus pés. Como é bom estarmos vivos e podermos desfrutar da natureza e daquilo que ela, sempre generosa, nos proporciona… beijos (mãe da Caracol)

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  3. Mãe da Caracolinha, obrigada por mais um terno comentário.
    Imagine o quão me emociona saber que conseguiu sentir os cheiros e revisitar esses seus passeios da juventude... Para mim é extraordinariamente gratificante saber que visita o azul porcelana e que consigo transportá-la para essas doces memórias. :)

    Um beijo enorme enorme!
    (*Está longe de ser um abuso de tratamento!)

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  4. Como escrever isto sem parecer mal ou uma coisa que não é? Cá vai...
    Ao ler este texto que aqui escreveste, ao ver as imagens que escolheste para ilustrar a tua pequena odisseia, conclui que é assim que deve ser a vida: abrir a janela e deixar entrar a chuva, sair e ir ao encontro do desconhecido, rumar ao sítio onde no spodemos perder, onde nos sentimos vivos e urge a necessidade de encontrar um caminho agradável ou aziago, mas que não nos é imposto por ninguém. A vida deve ser através de caminhos, escuros e curtos, longos e claros, sinuosos e fluorescentes, tanto faz, não deve é ser dentro de quatro paredes, intoxicados pelo ódio cínico, pela flatulência idiossincrática, pela obrigação de nada produzir para podermos clamar a nossa "independência".
    A vida também não é o engate, a possessão, o deixar descendência só porque sim ou só porque não; a vida não é ter um carro grande nem uns braços muito vasculares, nem tampouco tem de sermos nós a tentar por a pata em cima ou em torno de alguém e gritar «é minha, é meu» a vida deve ser uma partilha, um conhecimento acumulado dia após dia, sítios e mais sítios, quilómetros de estradas poeirentas e caminhos estreitos rodeados de canaviais que bailam com o vento forte, caminhos gravados na nossa memória, sempre cheios de aurora ou crepúsculo, ou até mesmo, penumbra.
    Pessoas estranhas, pessoas menos estranhas, pormenores, detalhes, leguminosas que crescem, coisas que florescem, pequenos peixes em charcos naturais de onde sai a água que alimenta os arcaicos sistemas de rega ou para um refrescar da face queimada pelas horas ao sol, que ao contrário da calva, não fica totalmente protegida pela boina de padrão axadrezado comprada há muitos anos a um senhor numa feira, que entretanto já morreu sem que ninguém se tenha voltado a lembrar dele.
    Não creio ser alguém que viu a luz nas tuas palavras, provavelmente tudo isto já pulsava em mim de uma forma discreta e cinzelada pelas expectativas da sociedade, mas agora, ap ver que há mais quem pegue em si e vá, fico com vontade de ir também, nem que seja só até ali à esquina, porque na esquina há coisas que eu desconheço, há o etéreo e tudo muda consoante os olhos de quem vê ou mostra. Agora sei que quero ir aos sítios que vejo todos os dias, a passar de carro, da janela do trabalho, mas de onde nunca vejo nada, porque apesar de os ver, nunca lá estou. Agora quero findar com aquela sensação que tenho sempre que saio de casa, a sensação de urgência do regresso por não suportar o pungente diálogo interno da minha solidão.
    Quero ir contigo se me quiseres lá levar, a esse sítio onde foste, onde urzes despontam na berma da estrada, onde o sol me recorda o raio do isolamento da infância. Quero ir a sítios que tu me queiras mostrar e quero mostrar-te sítios, sítios com qualquer coisa, com beleza duvidosa ou muito modesta, mas, sem pretensão, saturados apenas e só pela acutilante e inquietante dose de ultra-realismo.
    Vamos?
    (Para evitar embaraços, podemos sempre fingir que a pergunta é retórica)

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