Fui ver um filme português. Enquanto me dirigia-me à bilheteira do único cinema onde ainda se pode encontrá-lo apercebi-me, através da conversa das senhoras da frente, que a sessão das 22h já não exibia esse filme. "É normal, não tem público" disse a senhora da conversa. "Singularidades de uma Rapariga Loura" foi limitado a uma sessão por dia, reduzido àquelas sessões ingratas que incomodamente ocupam a hora do jantar . Lembrei-me de quando os meus pais iam ao hipermercado à hora do jantar aproveitando por vezes as horas de futebol ou da telenovela para não ser tão confuso.
Já tinha jantado, já não cheguei a tempo daquela sessão. Será assim mesmo que é visto o cinema português em Portugal? Os melhores filmes são considerados um "entretanto" que acontece nas horas mortas, nas horas mais inconvenientes. Sei que começa a existir espaço para os filmes nacionais, mas sinceramente vejo isso acontecer só para aqueles de pior qualidade. Acho que está condenado à hora do jantar apenas o segmento do cinema que se afasta dos moldes convencionais de hoje, do fast-cinema, onde os filmes são meros produtos vistosos, comercializáveis.
Desculpem o mau feitio, mas creio que se neste filme em vez de aparecer esta singular rapariga loura (Catarina Wallenstein) existisse uma formosa manequim, bem vestida, bem despida, lábio carnudos e olhar taralhouco, já seria possível encontrar este filme em várias sessão, em vários cinemas! Observaríamos aqui uma enchente de curiosos a correr em direcção ao cinema para ver a miúda desfilar na tela sem jamais se lembrarem de fazer as piadas aos planos do realizador e à sua câmara parada. Não interessaria a este público o olhar misterioso e a presença enigmática desta personagem, não foi com isto que cresceram, que se educaram, não é nisto que vêm o cinema. O cinema para mim morre aqui. Morre quando é visto como entretenimento, uma actividade lúdica. Entrar na sala e fechar a cabeça. Entretenimento para mim é evitar pensar muito, ficar mentalmente estático e esperar sair da sala com respostas, com o filme fechado para correr para outra actividade sem sobressaltos. Habituados ao ritmo e aos caprichos do cinema de Hollywood já poucos são aqueles que estão dispostos a sentarem-se e contemplar um filme, entregar-se a momentos simples, reflexivos, e à ironia e humor de um senhor que tem uma forma diferente de contar histórias.Espero não estar esta forma de cinema em extinção, como parece pressentir David Cronenberg em "Cada Um o seu Cinema".
Felizmente ainda existem outras linguagens, outras formas de narrar e de filmar. Ainda existem cineastas que acreditam que nem tudo pode ser tão desapaixonado e que, tal como a beleza, o cinema também não deverá ser gratuito, fácil, formato pipoca açucarada. Nos tempos do mediatismo e do imediato acredito haver uma razão para ainda termos entre nós um senhor com vontade de contar e ilustrar histórias e que nos brinda com as suas sátiras sociais. Um senhor com 100 anos de memórias. A sua curta-metragem em "Cada um o seu Cinema" é prova precisamente da sua vontade de fazer o seu cinema, de entrar em força e brincar com as regras, sociais e cinematográficas. É atrevido, e em vez de apresentar uma reflexão acerca do cinema ou da sala de cinema, como era estipulado para o filme, Manoel de Oliveira faz cinema. Oferece-nos assim um dos momentos mais inesperados do filme ao contar-nos um encontro entre o Papa João XXIII e Nikita Kroutchev, um encontro hilariante e muito sarcástico, que me faz pensar numa frase que li no seu aniversário: "Manoel de Oliveira, um homem sem anos". Tem um espírito tão jovem que me arrisco a dizer ter feito em "Cada Um o Seu Cinema" uma das mais ousadas curtas-metragens.
Acabei nessa noite por ver um filme italiano, o Almoço de 15 de Agosto, de Gianni Di Gregorio, um delicioso filme sobre a terceira idade. Logo no inicio do filme ri-me ao deparar-me com mais uma singularidade em português. Enquanto o filho lia Os Três Mosqueteiros, descrevendo d´Artagnan à mãe, uma senhora que não gostava de homens com nariz de águia, nas legendas portuguesas surge o nome de Dartacão, não uma, nem duas vezes.. várias vezes. Neste filme, pelas mãos do tradutor, o jovem d´Artagnan ganha literalmente uma vida de cão! Pior singularidade que esta só aquela que fez com que ninguém tivesse reparado neste insólito antes de o filme estrear em Portugal. Como é que ninguém corrigiu isto a tempo?!
Vi o filme português noutro dia. Gostei dos planos das janelas, gosto do que as janelas simbolizam, uma abertura para o mundo de alguém. Gostei de ouvir declamar uma parte de o
"Guardador de Rebanhos" de Alberto Caeiro e da forma como esta cena se desenrola com o avançar do poema.
"(..) E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem o seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com o florir e ir correndo.
É essa a única missão no Mundo,
Essa existir claramente,
Curiosamente (porque quando se fala de Manoel de Oliveira há sempre a necessidade de nos referirmos ao tempo, quase que justificá-lo) não gostei do tempo...achei que o filme precisava de mais, acabou abruptamente.
Não fiquei chateado... :) Acho que tens razão sobre o que dizes, mas são realmente os tempos em que vivemos. Porém, mesmo nestes tempos ainda há espaço para imprevisibilidade da vida... senão veja-se o Dartacão... Fantástico!
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"senão veja-se o Dartacão" ... Percebi mal ou queres que eu veja antes o Dartacão!? ehehe !! *
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